terça-feira, 20 de novembro de 2012

O SUSTENTO MISSIONÁRIO, UM SACRIFÍCIO FINANCEIRO?


“Se Deus quer a evangelização do mundo, mas te recusas a sustentar as missões, então te opões à vontade de Deus.” Oswald Smith.

Bíblia diz que a contribuição não é um peso, mas uma graça. Graça é um dom imerecido: “Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia” (2 Co 8.1). A contribuição não é somente alguma coisa que apresentamos a Deus, porém, principalmente, uma graça que Deus concede a nós. Deus nos dá o privilégio de sermos parceiros no grande projeto de evangelização do mundo e assistência aos santos.
A contribuição é uma semeadura e o dinheiro é uma semente. A sementeira que se multiplica é a que semeamos e não a que comemos. Quando semeamos com abundância, colhemos com abastança: “E isto afirmo: aquele que semeia pouco pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância também ceifará” (2 Co 9.6).

1. A DIFICULDADE MISSIONÁRIA DA IGREJA:
Alguém disse que os jovens gastam mais com refrigerantes do que com a obra missionária, que as mulheres gastam mais com cosméticos do que com a obra missionária, que os homens gastam mais com sua bebida preferida ou seu esporte favorito do que com a obra missionária e que muitos gastam mais com o veterinário do seu cãozinho de estimação do que com a obra missionária.
A dificuldade missionária da igreja não é carência de recursos, mas de uma mordomia, administração, certa dos recursos financeiros dados pelo Senhor.

2. DOIS OBSTÁCULOS POSTOS NA OBRA MISSIONÁRIA:
Segundo Arival Dias Casimiro, sempre que uma igreja local é chamada para investir em missão dois obstáculos são postos:

1. “O que arrecadamos é pouco e mal dá para atender às nossas necessidades”.
2. “A nossa igreja é pobre e não tem recursos para investir em missão”.

Biblicamente falando, não há qualquer base para estes dois argumentos. Quando o Espírito Santo age em uma igreja local as finanças da mesma são apreciadas puramente para demonstrar o amor de Deus por meio do auxílio aos necessitados: “Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coisas que possuía; tudo, porém, lhes era comum... Porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apóstolos; então se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade” (At 4.32,34,35).
É o Espírito de Deus quem desperta a solidariedade na igreja. Lembremos que Ele não precisa de dinheiro para agir. Não é Deus quem precisa de dinheiro. Nós é que recebemos bondosamente a graça de poder contribuir para o Reino de Deus. Deus é o Dono dos nossos bens, por conseguinte, Ele independe dos nossos recursos materiais. O problema que existe hoje é que somos diferentes dos cristãos do primeiro século. Na Igreja Primitiva os crentes contavam o testemunho assim: “Antes de sermos cristãos tínhamos casas e fazendas, e agora que somos convertidos a Cristo vendemos tudo e distribuímos aos pobres”. Hoje em dia, o que falamos é o oposto: “Antes de sermos cristãos não tínhamos casa nem carro, agora que somos crentes temos casa e carro”. O testemunho que deve ser proclamado é o da mensagem da cruz, o Evangelho de Deus.

3. A IMPORTÂNCIA DE CONTRIBUIR PARA O SUSTENTO MISSIONÁRIO:
É triste ouvir testemunhos de missionários que estão passando necessidades por negligência e descuidos de alguns que se dizem serem filhos de Deus. No entanto, são mercenários que roubam a Deus. Também é uma aflição vê o dinheiro ser gasto com e em coisas supérfluas. Sabemos que os dízimos e as ofertas são para manterem a casa do tesouro (os obreiros) e não para construir “palácios e castelos”, sendo que todos eles serão destruídos e que Deus não habita neles, mas, nos seres humanos. Segundo At 20.35 todo missionário deve ser o primeiro a ofertar, todo contribuinte na obra missionária é abençoado e todo recurso ofertado deve ser aplicado para suprir necessidades: “Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é mister socorrer os necessitados e recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber”. Apesar da negligência de alguns, Deus ainda providencia os recursos necessários para o sustento da obra missionária. A obra de Deus não para. Ela avança.

4. DEUS PROVIDENCIA OS RECURSOS NECESSÁRIOS PARA A OBRA MISSIONÁRIA:
Deus é tão gracioso que quando a igreja vive em obediência missionária, investindo em missão, Ele providencia os recursos materiais necessários: “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades. Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (Fp 4.18-20). Assim, Paulo demonstra que o poder que atua com eficiência na igreja é o poder do Espírito Santo e não do dinheiro. Aqui está um alerta: Deus julga nossas ofertas pela nossa motivação e não pela soma ofertada. Portanto, tenhamos cuidado com a maneira como ofertamos a Deus (ver At 5.1-11).

5. O SUSTENTO MISSIONÁRIO DE PAULO:
O apóstolo Paulo nos motiva a contribuir para a obra de Deus:

a) Mesmo quando as circunstâncias estão difíceis: “Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia; porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade.” (2 Co 8.1,2);
b) Pela graça de contribuir: “Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos” (2 Co 8.3,4);
c) Seguindo o exemplo de Jesus (ver 2 Co 8.5-9);
d) Pela fé (ver 2 Co 8.13-24).

Agora, analisemos o sustento missionário de Paulo:

a) Empregou-se de uma profissão alternativa (fazedor de tendas) para alçar o seu sustento para não escandalizar os irmãos de Corinto. Hoje, “fazedor de tendas” é o nome que se dá aos profissionais liberais que são enviados como voluntários para oferecerem serviços sociais às populações necessitadas nos países onde ser cristão ainda é crime. É uma solução usada para colocar legalmente um missionário num país desses; do contrário, ele nunca poderia ser aceito;
b) Paulo e Barnabé foram enviados pela igreja de Antioquia e esta deve tê-los sustentado (ver At 13.1-4);
c) Paulo afirma que recebeu ajuda da igreja filipense: “pela vossa cooperação no evangelho, desde o primeiro dia até agora” (Fp 1.5; ver 4.15-18);
d) Paulo expõe que recebeu igualmente ajuda de outras igrejas macedônias: “Também, irmãos, vos fazemos conhecer a graça de Deus concedida às igrejas da Macedônia; porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade. Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários” (2 Co 8.1-3);
e) Paulo estimulou a igreja dos coríntios a contribuir: “o que nos levou a recomendar a Tito que, como começou, assim também complete esta graça entre vós” (2 Co 8.6);
f) Paulo pensava que a igreja de Roma pudesse ajudá-lo em seu trabalho missionário na Espanha (Rm 15.2-24).

Observemos, agora, o sustento financeiro em Filipenses 4.10-20. Lendo esta referência bíblica notaremos os princípios de contribuição financeira para a igreja. Lembremo-nos de que os irmãos filipenses se mostraram tão generosos, em seu apoio financeiro, que o missionário Paulo tinha tudo com abundância:

a) A igreja deve estar associada ao missionário: “Todavia, fizestes bem, associando-vos na minha tribulação. E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros” (14,15).
b) A igreja deve cuidar e suprir as necessidades do missionário: “porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades” (16).
c) A igreja deve entender o princípio financeiro de Deus: “E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir, em Cristo Jesus, cada uma de vossas necessidades” (19).
d) A igreja deve saber que a oferta missionária agrada a Deus: “Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus” (18).
e) A igreja deve saber que a oferta missionária resulta em glória a Deus: “Ora, a nosso Deus e Pai seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (20).

6. PADRÕES GERAIS DE SUSTENTO MISSIONÁRIO EM ALGUNS PAÍSES:
Observemos agora alguns padrões gerais de sustento missionário em outros países citados pelo missionário Ronaldo Almeida Lidório:

a) No noroeste africano as pequenas igrejas tribais plantam campos de arroz coletivamente. Quando 5 ou 6 campos são plantados eles separam o melhor deles para “missões”. O arroz produzido naquele campo é vendido e enviado a crentes que habitam em outras tribos com o intuito de levar ali o Evangelho.
b) No sul da Índia há o costume de famílias de missionários serem “adotadas” por um grupo de famílias de uma determinada região que os sustentam de acordo com o seu padrão médio de vida.
c) Na China vários crentes separam uma árvore em seu pomar, um dia de trabalho por semana ou uma galinha em seu galinheiro cujo lucro é destinado ao trabalho missionário.
d) Na Indonésia algumas aldeias criaram o “dia da oferta” e todos naquele dia trazem parte da colheita a fim de enviarem aos seus missionários.
e) Em Portugal uma pequena igreja no Porto desenvolve um projeto escolar no templo ajudando a comunidade local e destinando o lucro para o sustento de projetos missionários nacionais e transculturais.
f) Algumas igrejas coreanas defendem a tese de que, havendo fidelidade nos dízimos, a igreja local ver-se-á sempre em condições de sustentar condignamente a obra missionária proposta.

7. COMO DEVEMOS CONTRIBUIR PARA A OBRA MISSIONÁRIA:
Lendo as cartas de Paulo aos coríntios veremos que devemos contribuir para a obra de Deus com:

a) Alegria: “Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria” (2 Co 9.7).
b) Proporcionalidade: “No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for” (1 Co 16.2).
c) Regularidade: (ver acima 1 Co 16.2).
d) Sacrifício: “Porque eles, testemunho eu, na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários, pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos. E não somente fizeram como nós esperávamos, mas também deram-se a si mesmos primeiro ao Senhor, depois a nós, pela vontade de Deus” (2Co 8.3-5).

8. FAZENDO O MAIOR INVESTIMENTO DO MUNDO:
Contribuir para missão é fazer o maior investimento do mundo, é ajuntar tesouros no céu: “mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam” (Mt 6.20). Precisamos contribuir para a obra missionária, afinal, “os que anunciam o evangelho que vivam do evangelho” (1 Co 9.14). Missão é tarefa da igreja, portanto, devemos investir tudo o que somos e tudo o que temos na evangelização dos pecadores. Se não for assim, não estamos crendo que seja essa a tarefa da igreja. Se amamos as pessoas que não têm Jesus, precisamos contribuir para missão. Alguém disse: “Podemos dar sem amar, porém não podemos amar sem dar”. É pasmoso pensar, e muito menos aceitar, a triste e deprimente realidade de que os crentes brasileiros gastam mais com Coca-Cola do que com aquilo que dizem acreditar: Missão. Hudson Taylor disse: “A obra de Deus, feita segundo a vontade de Deus, no tempo de Deus, tem os recursos de Deus”. Mas é lamentável que ainda não estamos usando o potencial que temos como igrejas para o sustento de nossos missionários. Precisamos despertar para a sustentação financeira da obra missionária. O apoio financeiro de missões deixará de ser um problema quando a paixão pelos perdidos arder no coração da Igreja.
Russel Shedd afirma: “O envolvimento das igrejas do Brasil em missões é ainda pequeno. No Congresso Brasileiro de Missões 1993 foi afirmado que a contribuição de cada crente era R$1.30 por ano. Temos em torno de um missionário para 10.000 crentes. Este quadro mudará radicalmente se Deus nos der uma visão nova que levantará centenas de candidatos para a obra transcultural. O temor que não teremos dinheiro suficiente para nossas necessidades locais para abençoar as nações evaporará. O temor que os nossos jovens não terão a coragem e perseverança para enfrentar os desafios tremendos que o missionário transcultural tem de enfrentar desaparecerá. O temor que o alto custo do envio e manutenção de obreiros não trará um retorno compensador entre os povos não-alcançados esvanecerá. O temor dos pais de orar para que seus filhos se ofereçam para missões diminuirá. Em fim, a promessa feita a Abraão e repetida por Jesus se cumprirá e Ele voltará para galardoar os seus destemidos servos”.

Portando, o que se pode concluir é que:
1. O sustento financeiro de missão é uma responsabilidade básica e contínua das igrejas locais em todo lugar.
2. Que os missionários não devem ter que “implorar” por apoio, pois esta atividade deve ser natural da igreja local.
3. O sistema de apoio deve permitir que os missionários utilizem o máximo de seu tempo e energia no trabalho missionário e todo trabalho missionário é “uma obra de fé”, do começo ao fim.
4. Todo cristão deve ser um ofertante fiel na obra missionária.
5. Toda oferta deve ser vista como um privilégio da graça de Deus.
6. Deus não precisa da minha oferta, mas sou eu que preciso contribuir.
7. Generosidade nasce em momentos de escassez.
8. A maneira bíblica de aumentar a arrecadação da nossa igreja é investindo em missões.

“Contribui de acordo com tua renda para que Deus não torne a tua renda segundo a tua contribuição” (Peter Marshall).

Em Cristo
Pr. Capelão Miss. Edmundo Mendes Silva

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

A Igreja e sua Missão no Plantio de Igrejas


O assunto plantio de igrejas deve ser observado sob a perspectiva da missão, ou seja, o resultado do desejo de Deus que envolve a ação da Igreja.
Um dos maiores perigos existentes no processo de plantar igrejas é defrontar-se com um cenário onde a missão da Igreja está desassociada da missão de Deus, a Missio Dei. E isso ocorre quando a Igreja segue sua própria agenda, de plantio ou crescimento, por motivações próprias e antibíblicas. Não para a glória de Deus, mas para a glória da igreja. Não para alcançar os perdidos, mas para fortalecer a denominação. Não para exaltar Jesus, mas para exaltar os seus líderes.
Michael Green, em seu comentário do evangelho segundo Mateus, 27 expõe que, na Igreja primitiva, a missão era um conceito fácil de ser compreendido. O desejo de Cristo - de ser anunciado a todos - era claro para cada crente. Essa missão, porém, apesar de clara e facilmente compreendida, era complexa em sua execução, pois demandava sair de Jerusalém, abrir mão de uma estrutura eclesiástica local já em formação que providenciava um senso de conforto para os cristãos.
Muitos missiólogos compreendem que o plantio de igrejas, e não apenas o evangelismo individual, é um ensino contido na grande comissão, o que creio ser evidente. Hesselgrave, Johnstone e Bosch manifestam-se de forma marcante nessa compreensão expondo que o fazer discípulos da grande comissão é uma ordem que desembocaria no agrupamento dos crentes, formação de igrejas locais, expansão do Reino de Deus. Johnstone entende que fazer discípulos, batizando-os e ensinando-os a Palavra de Deus, implica em “uma vasta diversidade de atividades envolvendo os crentes em uma comunidade com a qual se relacionarão e prestarão contas”.
Richard Hibbert expõe o pensamento de Love quando esse defende a ligação entre a grande comissão e o plantio de igrejas com base em Atos 14.21-23, que contém o mais conciso relato sobre plantio de igrejas no Novo Testamento. O termo usado no verso 21 (fizeram muitos “discípulos”) vem do verbo matheteo usado em Mateus 28.19, na grande comissão. Esses são os únicos dois lugares em que o verbo é usado no Novo Testamento. Expressa o desejo de Cristo para seus discípulos na grande comissão e, a partir dela, Seu desejo de ver esse grupo de discípulos gerando novos grupos que amam e seguem e Jesus, ou seja, plantando igrejas.
Em razão desse pensamento, Hibbert menciona que: “Tenho argumentado que o plantio de igrejas é peça fundamental na Missio Dei. Sem o plantio de novas igrejas o propósito de Deus não é realizado na terra. A transformação da sociedade na direção de Deus ocorre através da sua agência, a Igreja, e assim comunidades locais de convertidos são a maior expressão de sua presença e seu desejo transformador”.  Assim, perdendo a Igreja a prioridade da grande comissão, perderá também o caminho para o cumprimento do desejo de Cristo: uma comunidade de santos pregando um evangelho transformador e gerando, no poder de Deus, outras comunidades que seguem e amam o Senhor. Inquieto-me ao ver uma atual verdade nas antigas palavras de Cirenius, teólogo bizantino, ao afirmar que a Igreja “sofrera a tentação de desenvolver a sua personalidade e perder a sua finalidade”. À imagem do primeiro homem, a Igreja também peca quando esquece o porquê está aqui e imagina ser suficiente apenas o existir. Torna-se assim tal qual uma linda rosa vermelha... a qual nasce, cresce, murcha e morre em um campo distante sem ser vista por ninguém, sem dar prazer a nenhum olhar.
Vivenciamos a tendência da errática cristã, a qual tenta incluir-se nas bênçãos do evangelho e se autoexcluir de sua prática: a antibíblica vontade de ver a terra arada sem por as mãos no arado.

Igreja – O Conceito Neotestamentário
A Igreja no Novo Testamento é o resultado de uma construção de valores e fatos. A compreensão de Igreja que os discípulos possuíam crescia em estágios bem demarcados. Em um primeiro momento, havia a compreensão da Igreja a partir e ao redor dos apóstolos. Jerusalém tornou-se não apenas o palco para a permanência dessa igreja como também um símbolo de centralização. Em outro estágio encontramos o conceito dos gentios que não apenas passaram a ser evangelizados a partir de Antioquia, mas passaram, eles mesmos, a definir o conceito crescente de Igreja nas mentes e corações dos convertidos. Outro estágio ainda, após o enraizamento de igrejas locais espalhadas por todo o mundo gentílico através da dispersão dos crentes em Atos 8 e do envio de Paulo e Barnabé em Atos 13, as próprias igrejas locais passaram a plantar igrejas locais. Michael Green chama nossa atenção para esse momento em que não apenas Jerusalém, mas os discípulos pioneiros, deixaram de ser o centro motivador do evangelismo. Agora, as igrejas locais passam a olhar ao redor e começam a plantar novas igrejas.
O Espírito Santo, no Pentecostes, conferiu autoridade à Igreja para a sua missão. Assim, milhares de homens e mulheres, cheios do Espírito Santo, passavam a apresentar as Boas Novas por onde quer que chegassem. Esses - do caminho - não possuíam ainda uma eclesiologia definida, porém eram alimentados pela Palavra, a partir do ensino dos apóstolos, havendo entre eles um ambiente de comunhão, dedicação à oração e proclamação de Jesus.
Creio ser relevante, para nosso estudo sobre plantio de igrejas, entendermos um pouco do perfil desta Igreja no Novo Testamento, pois boa parte da problemática no processo de plantar igrejas advém da má compreensão da natureza da própria igreja pelo que a planta.

Igreja de Deus
Devemos, inicialmente, identificar alguns conceitos bíblicos que nos ajudarão a compreender o significado neotestamentário de “Igreja”.
Comumente encontramos no Novo Testamento a expressão “Igreja de Deus” (“Ekklesia tou Theou”), o que evidencia que essa Igreja veio de Deus e pertence a Ele. É uma comunidade que possui Deus como fonte; é eterna, espiritual e universal. Não provém de elucidação humana ou de uma obsessão. Permanecia em Jerusalém, mesmo depois de ter sido revestida de poder no Pentecostes. Após Atos 8, com a forte perseguição da Igreja, os crentes foram dispersos e iam por toda parte pregando a Palavra. Em meio à crise, a Igreja foi gradualmente perdendo seu apego territorial a Jerusalém e envolvendo-se com as comunidades cristãs que nasciam em território gentílico. A própria Igreja em Antioquia, enviadora de Paulo e Barnabé em Atos 13, eram formados, primariamente, por judeus convertidos. É notório, portanto, que a visão da Igreja se expande se aproximando mais da visão do seu Senhor. Compreendeu-se que a igreja local não pertence ao local, pertence ao Corpo que é dinâmico e se expande segundo a Cabeça, que é Cristo.
Plantadores de igrejas não devem ser limitados pela geografia ou territorialidade. Sua missão é focada em pessoas, sejam do grupo alvo ou outros que estão ao seu redor; da etnia que estuda ou outra que se aproxima. Onde houver uma porta aberta e um coração sem Deus, ali devemos apresentar o evangelho, pois na cosmovisão do Senhor a igreja é formada por pessoas. Onde há pessoas há possibilidade de vermos nascer a igreja de Cristo.

Igreja Humana
Também dentro do conceito de “Igreja” nos deparamos no Novo Testamento com um perfil bastante humano. Em 1 Tessalonisenses 1.1, por exemplo, vemos “igreja de Tessalônica” (“ekklesia Thesalonikeon”) dando-nos a ideia daqueles que são Igreja também sendo tessalônicos, cidadãos de Tessalônica.
Mostra-nos o fato de que por serem “Igreja” não significa que deixam de ser cidadãos, patriotas, carpinteiros, lavradores, comerciantes, desportistas, pais, mães ou filhos. “Igreja” no Novo Testamento não é apresentada como uma comunidade alienante, mas como uma comunidade que abrange o homem em seu contexto humano, fazendo-nos entender que essa Igreja não foi separada do mundo, mas purificada dentro dele.
No livro de Atos, a humanidade, passo a passo, era chocada com a fé daqueles que transtornavam o mundo, segundo a qual o viver é Cristo, o objetivo era ganhar almas, a alegria era a adoração, o que os unia era a verdadeira comunhão, o amor era traduzido em ações, os fortes guiavam os fracos, as dificuldades eram enfrentadas com oração, a paz enchia os corações. O Mestre enfatiza que não vos compete conhecer tempos ou épocas. Para a expressão “tempos ou épocas” o texto poderia utilizar o mesmo termo encontrado no versículo 6: “chronos”. Dessa forma, Jesus estaria dizendo que não era da competência dos discípulos conhecerem o “tempo humano” (dia, mês e ano) em que o Reino seria restaurado. Assim, Jesus condicionaria o assunto escatológico a um plano humanamente inteligível. Outra opção textual seria a utilização do termo “kairos” para “tempos ou épocas” na resposta de Cristo e, assim, enfatizaria que “não vos compete conhecer o tempo de Deus”, ou seja, “os fatos e acontecimentos que assinalavam um momento certo ou errado de algo acontecer”, nas palavras de Tertúlio Cônico. Dessa forma, Jesus afirmaria que não era da competência dos discípulos conhecerem o “tempo de Deus”, o momento apropriado na economia do Pai para que o Reino chegasse. Para nossa surpresa textual, a expressão “tempos ou épocas” no versículo 7 utiliza ambos os termos e conceitos: “chronous kai kairous” (o tempo humano e o tempo divino) e, com isso, o texto afirmava que a prioridade de Jesus não era escatológica (os últimos dias, os eventos finais, a consumação dos séculos), mas missiológica. O versículo 8 intervém com a expressão mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo e sereis minhas testemunhas.... Com essas palavras Jesus explicava o Reino: Ele criara uma Igreja funcional e não apenas contemplativa, nascida para espalhar a Sua Palavra a todos os povos, em todas as gerações, até a Sua volta. Paulo entende esse princípio e, em Romanos 15.20, explica que aqueles que nada ouviram são a prioridade de Deus em relação à evangelização mundial. Isso pode ser perto ou pode ser longe, tanto em uma tribo isolada quanto do outro lado da rua. O valor de uma alma, para Deus, é o mesmo: mais que o mundo inteiro.

Igreja – O Processo Do Envio
Olharemos para a igreja em Antioquia como paradigma de envio, compromisso evangelístico e força plantadora de igrejas. A proposta é fazê-lo sonhar com esse modelo bíblico. Não foram Paulo e Barnabé que iniciaram esse grande movimento de plantio de igrejas entre os gentios, mas uma igreja, sensível ao Espírito, com a visão do Reino, temor à Palavra e pronta para servir. Igrejas plantam igrejas.
“Ora, na igreja em Antioquia havia profetas e mestres, a saber: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, colaço de Herodes o tetrarca, e Saulo. E servindo eles ao Senhor e jejuando, disse o Espírito Santo: Separai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado. Então, depois que jejuaram, oraram e lhes impuseram as mãos, os despediram”. (At 13.1-3)
O versículo 1 enumera cinco líderes da igreja em Antioquia descritos sob a categoria de “profetai kai didaskaloi” (profetas e mestres). “Profetes” era aquele que “falava em nome de Deus” e, também, utilizado no grego ático tanto para “pregador” quanto para “expositor das leis”. O “Didaskalos” é o mestre (de “didasko”: ensino) aplicado para aquele que possui discípulos. Parece-me que, nesse caso, esses “didaskaloi” estavam mais ligados à instrução dos novos convertidos em Antioquia. Nessa lista, primeiramente, é mencionado Barnabé, o qual era “natural de Chipre”. Em seguida, Lucas cita Simeão referindo-se, provavelmente, a um africano “Níger” (negro) e menciona Lúcio “de Cirene” provindo do norte da África. Também lista Manaém, colaço (“syntrophos”: irmão de leite) de Herodes e, finalmente, Saulo.
O versículo 2 começa com uma ação coletiva: e servindo eles ao Senhor...”. E as duas perguntas que devem ser aqui levantadas são: quem são “eles” e como serviam ao Senhor? Há três possibilidades para entendermos “eles”, já que o texto não o define: refere-se a toda a igreja em Antioquia; ou apenas aos cinco líderes do verso anterior; ou ainda, especificamente, a Paulo e Barnabé, mencionados separadamente logo após.
Por ausência de ligação textual, creio que podemos excluir a “igreja em Antioquia” restando-nos os cinco líderes do versículo 1 e Paulo e Barnabé do versículo 2. De qualquer forma, esses últimos são também mencionados na lista de líderes; portanto, os utilizaremos como pressuposto para “eles”. Sigamos para a pergunta principal: como serviam ao Senhor?

Leitourgoi – Edificadores do Corpo de Cristo
O verbo “servindo” (leitourgounton), utilizado aqui, aponta para aqueles que serviam ao Senhor como “leitourgoi” - servos. Lembremo-nos de que havia três formas de alguém se apresentar como “servo” no contexto neotestamentário:
1.      Como “doulos” - o escravo. Nas palavras de Candus: “Aquele que pessoalmente acompanha o seu Senhor para realizar os desejos do seu coração”. Portanto “doulos”, no contexto do Novo Testamento, é aquele que tem um compromisso direto com Deus; que serve pessoalmente ao seu Senhor.
2.      Como “diakonos” - o mordomo. Aquele que serve ao seu Senhor através do serviço à comunidade. Na Bíblia, o termo é usado para aqueles que, sensíveis à necessidade do Corpo de Cristo - física e espiritual - servem a Deus.
3.      Como “leitourgos” - o edificador. O termo, ligado à “leitourgia” (liturgia), não é restrito como o usamos hoje. Refere-se àquele que serve ao Senhor sendo usado por Ele para abençoar e edificar o seu irmão. E esta é justamente a raiz do verbo que expressa que Paulo e Barnabé “serviam” ao Senhor afirmando, portanto, que eles eram, antes de tudo, “abençoadores” ou “edificadores” do Corpo de Cristo em Antioquia. Eram uma bênção, como se pode falar hoje.
Portanto, a primeira característica apontada pelo texto a respeito desses dois homens, que iniciaram a obra missionária como a conhecemos hoje, não foi à competência intelectual, o título ministerial ou a profundidade teológica, mas a fidelidade de vida em relação aos de perto, aqueles que os rodeavam em Antioquia.
Uma aplicação objetiva do texto seria esta: não envie para longe aqueles que não são uma bênção perto. Aquele rapaz que diz possuir um claro chamado ministerial, se não tiver, primeiramente, um desejo ardente pelo ministério comprovado pelo serviço em sua igreja local, certamente, não o terá em lugares distantes. Ele não está pronto para ser enviado ao seminário. Aquela jovem que, insistentemente, afirma ter um claro chamado ministerial para a obra missionária em algum lugar distante, se não o demonstrar, onde está, com os ministérios e oportunidades locais, não o fará também do outro lado do mundo. Ela não está pronta para ser enviada ao preparo ou ao campo.
Um plantador de igrejas que, localmente, não evangeliza e não apresenta disposição para cooperar com as excursões evangelizadoras da igreja, certamente não demonstrará nada diferente em outras paragens.
Spurgeon já falava em 1885 que nada é mais difícil do que se mostrar fiel aos de perto que bem lhe conhecem” e, aqui, três rápidas aplicações poderiam ser feitas.
§  Pessoal. Não há nada mais perto de nós do que a nossa família. Aquele que não pode ser apontado pela esposa, esposo ou filhos como leitourgos no dia-a-dia de sua casa, dificilmente será uma bênção fora dela, seja ele um professor, pastor, missionário ou crente.

§  Ministerial. Líderes e pregadores que se destacam nos púlpitos e salas de aula de igrejas e seminários, mas fracassam com a família, amigos e pessoas chegadas, não estão prontos para o ministério. Plantadores de igrejas que são exímios no que fazem, nas ruas, praças e templos, porém não têm testemunho de Cristo entre os seus, não estão qualificados ao envio. O ministério não define o próprio ministério. O caráter de Cristo em nós é que o faz.

§  Eclesiástico. Não há nada mais perto da igreja do que a própria igreja, os irmãos com os quais nos encontramos a cada semana. Se uma comunidade cristã não demonstra ser leitourgos, abençoadora, para aqueles com a qual convive dia a dia, culto a culto, dificilmente conseguirá fazer diferença em outros lugares, seja perto, seja longe.

Aphorizo – Separando para o envio
O texto diz que servindo eles ao Senhor, disse o Espírito Santo: separai-me...”. O texto não esclarece como o Espírito se manifestou e falou à igreja, mas toda a ação deixa bem claro que a igreja, prontamente, ouviu.
O conteúdo do que Ele falara foi “separai-me” (aphorisate), do verbo “aphorizo”, o qual é um verbo exclusivista também usado em Mateus 25.32, quando o pastor “separa” as ovelhas dos carneiros. “Aphorizo” se diferencia de “ekklio”, pois não se trata de uma separação de relacionamento (foram excluídos da igreja de Antioquia), mas de uma separação para uma função (permanecendo ligados à igreja, são agora designados para uma função além da igreja local). É o mesmo termo usado nos Documentos de Cartago quando cidadãos comuns eram chamados para engrossar as fileiras do exército romano. Portanto, Paulo e Barnabé seriam separados porque, primeiramente, haviam sido chamados e não o contrário.
É bom também entendermos que “ergon” (a obra) para a qual foram chamados é um termo genérico que tanto pode significar um ato quanto uma função e poderia ser usado por ser essa obra já bem conhecida por todos na Igreja – a evangelização dos gentios – ou também para chamar a atenção para o ponto principal deste comando: não a obra, mas quem os chamou para essa obra. Demonstra também flexibilidade ministerial indicando que a obra pode mudar, mas o chamado permanece, pois se baseia naquele que nos chamou.
A expressão jejuando e orando vem como um conjunto que se completa já que, segundo Stott, “o jejum é uma ação negativa (abstenção de comida e outras distrações) em função de uma ação positiva (culto e oração)”, e, em subseqüência, impondo sobre eles as mãos...” trás a expressão “epithentes tas cheiras”, que possui vasto significado para o conceito de envio missionário. Vejamos os principais:
*      Sinal de Autoridade. Este “impor de mãos” remonta ao grego clássico, quando um pai impunha suas mãos sobre o filho que lhe sucederia na chefia da família, ou seja, uma transferência de autoridade. Para Paulo e Barnabé, isso significaria que eles possuíam a autoridade eclesiástica para fazer tudo o que a Igreja faria mesmo onde ela não estivesse presente, como comunidade. É, portanto, ao mesmo tempo, uma carga de autoridade e responsabilidade. Como igreja em Antioquia, eles poderiam pregar a Palavra, orar pelos enfermos e desafiar os incrédulos, mas precisariam também compartilhar da mesma fidelidade e dedicação que existia naquela comunidade dos santos.

*      Sinal de Reconhecimento. Também era usado em momentos oficiais como na cidade de Alexandria, quando 20 oficiais foram escolhidos especialmente para guardar a entrada da cidade que sofria com frequentes ataques de nômades, e sobre eles “foram impostas as mãos” em sinal de reconhecimento de que eram dotados das qualidades para aquela função. Para Paulo e Barnabé, isso consistia no fato de que a liderança da igreja reconhecia não apenas o chamado (que era claro), mas a capacidade e dons para cumprirem a missão.

*      Sinal de Cumplicidade. Encontramos também no grego clássico o “impor de mãos” no sentido de cumplicidade quando generais eram enviados a terras distantes para coordenar uma província e as autoridades enviadoras impunham as mãos demonstrando ao povo que eles não seriam esquecidos, ou seja: permaneciam como parte do corpo. Para Paulo e Barnabé, significaria dizer que, por mais distantes que fossem, permaneceriam ligados à igreja de Antioquia. Que essa igreja continuaria responsável por eles, amando-os, desejando o melhor e, com certeza, sustentando-os. Ao meu ver, impor as mãos como sinal de autoridade e reconhecimento não é tão difícil como impô-las como sinal de cumplicidade, pois esse último é um ato contínuo que demanda dedicação e profundo amor. Kent Norgan afirmou que “é mais fácil amar aquele que se vê e ter compaixão ao que está sempre ao seu lado”.
Por fim, a igreja “... os despediu (apelusan), do grego “apoluo”, que significa “fazer as honras do envio”. Creio que havia aqui um aspecto prático, pelo qual líderes e irmãos pensaram também nas necessidades imediatas de Paulo e Barnabé, para a viagem e ministério. “Apoluo” é uma expressão formal, portanto leva-nos a crer que não foram despedidos de forma simples, mas antes houve um culto no qual a igreja oficialmente se reunira para enviá-los: um abençoado culto de envio.


Em Cristo
Pr. Capelão Miss. Edmundo Mendes Silva

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

EVANGELIZAÇÃO DE GRUPOS SINCRETISTAS


Compreendendo as diferentes fontes religiosas para uma comunicação eficaz

É comum a classificação dos povos e países do mundo em blocos religiosos bem específicos em termos de mega-religiões. Assim, classifica-se os povos em cristãos, islâmicos, budistas, hinduístas, animistas e o restante como pertencentes a outras religiões ou religiões minoritárias. Entretanto, muitos ainda não se deram conta de que, possivelmente a maioria dos povos ainda carentes de ação missionária, apesar de professarem uma destas mega-religiões, possuem uma religiosidade sincretista. Especialmente em povos de cultura menos tradicional, mais aberta a novas formas de resolver problemas e ao intercâmbio lingüístico, aberta a novas expectativas e meios de subsistência, há uma maior abertura também na religiosidade, facilitando assim a mistura religiosa.
O catolicismo popular brasileiro é fortemente influenciado pelo espiritismo, enquanto o animismo de muitos grupos indígenas é influenciado pelo catolicismo e em alguns casos também pelo candomblé. Isto não acontece apenas no Brasil e por isto um missionário que vai trabalhar com muçulmanos precisa estar ciente de que, em algumas regiões a religiosidade islâmica é mesclada com xamanismo, enquanto em outras regiões recebe influência animista. Da mesma forma, quem vai trabalhar com budistas deve estar ciente que em algumas regiões encontrará um sincretismo budista-xintoísta, enquanto em outras a realidade poderá ser um sincretismo budista-confucionista e assim por diante. 
Em contextos assim, não basta ter um bom conhecimento da religião dominante. É preciso fazer uma leitura acurada das diferentes camadas religiosas, detectando os princípios religiosos ativos que influenciam o dia-a-dia do povo. Entre o dogma e a praxe, muitas vezes há uma grande separação. O dogma parte de uma elite pensante, que via de regra pertence à religião oficial ou predominante. Mas a praxe é o que o povo vive, a religiosidade viva, ativa, e que geralmente flui da religião popular. O dogma dá respostas a perguntas, mas a praxe dá soluções aos problemas. No catolicismo popular brasileiro, o dogma diz que Deus é bom e protege aqueles que o buscam, mas a praxe diz que uma ferradura de sete furos protege a casa do mal. No nível do dogma, fazer um sinal-da-cruz em frente ao cemitério é interceder pelas almas dos mortos, mas na praxe é proteger-se contra “assombrações”!
Não basta ter conhecimento dos dogmas, é preciso compreender a praxe também. A falta desta compreensão favorecerá o surgimento de igrejas sincretistas, pois o evangelho pode entrar apenas como mais um princípio religioso.

O QUE É SINCRETISMO?
O termo sincretismo foi usado inicialmente por Plutarco, no século 1, para designar a união das cidades cretenses contra inimigos comuns (no grego syn, “união” + cretismo, “cretenses”). Somente no século 16 a expressão passou a ser relacionada à mistura religiosa. 
Scott Moreau, professor de religiões populares no Wheaton College, define sincretismo como uma substituição ou diluição de elementos essenciais do evangelho. Seguindo o seu raciocínio, o conceito pode ser ampliado para substituição ou diluição de elementos essenciais de uma certa religião. Já David Hesselgrave entende sincretismo como uma modificação e adaptação de crenças e práticas de sistemas opostos (ou diferentes) resultando em um novo sistema. Neste caso o termo fica bem restrito, pois nem sempre surge um novo sistema. 
Para fins de convenção, o termo sincretismo será empregado neste texto de forma mais genérica, sendo conceituado como a mistura de princípios religiosos diferentes ou opostos, com a aceitação de todos como verdadeiros, em maior ou menor escala, independente desta mistura se dar em nível de influência apenas ou de uma fusão. Desta perspectiva, é possível perceber sincretismo desde o macro das mega-religiões até as suas microdivisões, como no contexto cristão evangélico. Fica claro também que sincretismo não é uma religião, mas sim uma mistura religiosa, da mesma forma que miscigenação é uma mistura racial.
Apesar do uso do termo neste sentido ser relativamente recente, a prática em si é muito antiga. Já no Antigo Testamento encontramos vários exemplos, como o caso dos povos que ocuparam Samaria, em 2 Reis 17.27-33. Cada povo levou para lá seu respectivo deus. Um sacerdote israelita foi enviado para ensiná-los a “servir o deus da terra” e o resultado foi uma religiosidade altamente sincrética. “Adoravam ao Senhor, mas também prestavam culto aos seus próprios deuses, conforme os costumes das nações de onde haviam sido trazidos” (v.33).
No Novo Testamento temos o exemplo clássico do gnosticismo, combatido por vários autores bíblicos, que era um sistema religioso dualista, incorporando elementos dos mistérios orientais, do judaísmo, do cristianismo e dos conceitos filosófico-religiosos dos gregos.

NÍVEIS DE SINCRETISMO
O sincretismo se dá com o contato de dois ou mais sistemas religiosos, podendo acontecer em vários níveis ou graus. Os quatro níveis a seguir destacados, são apenas os principais.

1.      Em um primeiro nível, a antiga religião é preservada, mas absorve influências de uma nova religiosidade. Este é o caso, por exemplo, dos Krenak do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Avessos a tudo que vem da sociedade externa, resistiram ferrenhamente ao processo de catequese desenvolvido pelos capuchinhos desde o século 17, bem como, à influência católica da sociedade envolvente ao longo dos anos. 
Em conversas sobre a sua religiosidade, eles são enfáticos em afirmar: “não somos católicos nem protestantes”. Entretanto, é fácil perceber alguns traços do catolicismo na religiosidade Krenak. 
Na dimensão do divino, os Krenak possuem três categorias principais de poderes espirituais: Maréts – significa literalmente “velhos” e trata-se de seres espirituais que habitavam o céu (taru), os grandes ordenadores dos fenômenos da natureza e protetores os índios (burúm); Nanitiongs (ou Nandyóns) – espíritos encantados dos mortos, dignos de veneração; e os Tokóns – espíritos da natureza, mas que também podem manter contato com os xamãs.
Logo, a despeito da influência católica durante séculos, os Krenak mantiveram suas categorias de poderes espirituais, além de lugares sagrados e rituais. Porém, incorporaram categorias católicas ao seu universo espiritual, como santos, a Virgem Maria e a própria pessoa de Cristo. O Ser Supremo dos Krenak é o mesmo Deus dos cristãos que, apesar de ausente no dia-a-dia, foi incorporado no universo religioso indígena. 

2.      Em um segundo nível, e possivelmente o mais comum, a nova religião é aceita, mas interpretada pela ótica da antiga religiosidade. Este é o caso dos Caxixó do centro-oeste mineiro. Subjugados pelos colonizadores no século 18, tornaram-se jagunços e posteriormente agregados de fazendas. Proibidos de falar a língua e praticar seus rituais, aos poucos se tornaram católicos, mas interpretam o catolicismo de forma bem peculiar.
Eles usam a Bíblia, celebram missas no vilarejo e participam das programações católicas no povoado mais próximo. Entretanto, preservaram em grande parte a sua cosmovisão animista, praticando ainda antigos rituais de cura e invocação de espíritos. Na dimensão do divino, buscam proteção em Jacy, entidade herdada dos “Carijó”, que a identificava com a lua. Temem a Angüera, também herdada dos Carijó, descrita como um ser medonho, de rabo e língua branca. Crêem ainda nos Caboclos D’Água, seres que vivem nas águas do Rio Pará. 
Assim, ao contrário dos Krenak que incorporaram categorias católicas ao seu universo religioso, os Caxixó se tornaram católicos, mas incorporaram no catolicismo categorias da sua antiga religiosidade. 

3.      Em um terceiro nível, a nova religião é aceita, porém a antiga é preservada sem que haja uma fusão. Hesselgrave prefere classificar este caso como “multi-religião”, citando como exemplo os casos do Japão e da China. Para ele, no Japão são praticados o xintoísmo e budismo, com influências do confucionismo e taoísmo. Já na China, essas mesmas religiões se manifestam em áreas específicas da vida. O confucionismo em aspectos intelectuais e éticos; o budismo na filosofia e arte; o taoísmo em aspectos místicos e idealistas.
Apesar de não se fundirem, é inevitável a influência recíproca dessas religiões, portanto, pode-se considerar este fenômeno como sincretismo.

4.      Em um quarto nível, a antiga religião se funde com a(s) nova(s) religiosidade(s), formando um novo sistema religioso. Um caso típico seria os Xacriabá do norte de Minas. Contatados pelos colonizadores ainda no século 17, passaram por um intenso processo de miscigenação com negros, escravos e retirantes baianos. Foram também catequizados pelos capuchinhos e o resultado foi à fusão da sua antiga religiosidade com o candomblé afro-brasileiro e com o catolicismo de tal forma que surgiu um novo sistema religioso. 
A principal entidade Xacriabá é a onça-cabocla Yayá, protetora e orientadora do povo. A segunda é São João dos Índios, que se trata de uma imagem católica esculpida por um indígena e atribuída a São João. Entretanto, o conceito Xacriabá daquela imagem tem pouco a ver com o São João católico, e sim com uma entidade espiritual que protege o povo. O lugar mais sagrado é o terreiro, onde praticam seus rituais. Para entrar ali, os participantes devem estar vestidos de branco e descalços, aos moldes de muitos rituais afro-brasileiros. 
Este caso revela não apenas a influência de uma religião sobre outra, mas a fusão de princípios religiosos ativos diferentes, resultando num terceiro ou quarto elemento. 

CAUSAS DO SINCRETISMO
Em última análise, o sincretismo é fruto do vazio espiritual, do sentimento de que algo está incompleto, ainda por vir. Mas em termos histórico-culturais, pode surgir por várias causas, das quais serão apontadas aqui apenas as principais.

1.      Imposição – Em processos de conquista e dominação política, é historicamente comum a imposição da religião dos dominadores como parte do processo de subjugação. Assim aconteceu na época das conquista de Alexandre, o Grande, quando a religiosidade e mitologia grega foram amplamente difundidas. E o mesmo aconteceu no período das grandes expansões européias, quando a religião dos Estados andava de mãos dadas com os colonizadores. 
Sempre que uma religião é imposta, o povo a assimila superficialmente, no nível das formas, mas no nível dos significados a sua antiga religiosidade permanece viva. A maioria dos indígenas brasileiros passou por este processo de cristianização através da ação dos capuchinhos, jesuítas e salesianos. Tentando livrar os indígenas do genocídio promovido pelo governo e militares, esses religiosos faziam aldeamentos, onde reuniam várias tribos num processo unificado de catequese. Proibiam a prática da religião tradicional e impunham o catolicismo, ao mesmo tempo que proibiam o uso da língua materna e impunham o português. O resultado foi um sincretismo religioso que até hoje influencia não apenas o catolicismo, mas também o evangelicalismo popular. 

2.      Intercâmbio religioso – Alguns sistemas religiosos são resistentes ao sincretismo, enquanto outros são mais abertos. Especialmente neste segundo caso, o simples contato com outras práticas religiosas já é suficiente para causar misturas de princípios ativos. As sociedades de cultura menos tradicional estão mais abertas a absorver o que consideram de melhor nas outras religiões. É o caso dos seguimentos religiosos considerados esotéricos. 
Em tempos de globalização, quando o pluralismo e relativismo pós-moderno imperam, cresce a tendência à subjetividade religiosa, onde cada um pratica o que acha melhor. Mas este intercâmbio não é privilégio da pós-modernidade, pois os romanos já praticavam o intercâmbio de deuses, inclusive com povos por eles subjugados. Este também era o principal problema dos Israelitas nos tempos do Antigo Testamento, que com uma facilidade incrível se envolviam na adoração de deuses dos povos vizinhos. 

3.      Falhas na comunicação – Pensando mais especificamente no trabalho missionário, as falhas na comunicação podem ser apontadas como as principais causas de sincretismo. A falta de compreensão da cultura e religião local por parte do missionário, resulta numa comunicação truncada do evangelho. A exportação de formas culturais ao invés de princípios bíblicos resulta num evangelho irrelevante para o povo. E uma igreja que surge em situações assim, está apenas a um passo do sincretismo. 
Outra questão crítica é a contextualização. Há um longo debate acerca de sincretismo e contextualização, como sendo coisas muito próximas. O missiólogo neozelandês John Roxborogh faz um interessante questionamento: “se contextualização é apenas um bom sincretismo, então sincretismo é apenas uma contextualização ruim?”. E Paul Hiebert faz uma excelente exposição sobre essa questão quanto discorre sobre formas de lidar com o “velho” (tradições, costumes, religião). Para Hiebert, quando o “velho” é simplesmente negado, a contextualização é rejeitada. Isto gera um vácuo cultural que acaba sendo preenchido pela cultura do missionário, resultando em igrejas culturalmente alienadas, imaturas na fé e sincretistas em potencial. Quando o “velho” é simplesmente aceito, acontece uma contextualização acrítica, e isto resulta em sincretismo no grau mais complexo possível. 

LIDANDO COM POVOS SINCRETISTAS
Como evangelizar um povo sincretista, sem que o evangelho se torne apenas mais um elemento religioso? Ou como evitar que o evangelho seja reinterpretado a partir da antiga religiosidade? Não existe resposta simples e não se pode fechar a questão. Em última análise, sem sabedoria do alto e discernimento de Deus é vã qualquer tentativa, mas algumas medidas podem contribuir para o desafio em pauta.

1.      Análise fenomenológica – Os estudos de fenomenologia da religião aplicados ao trabalho missionário são relativamente novos no Brasil e por isto ainda não muito evidenciados. No processo de análise de qualquer povo, focaliza-se atenção em três áreas principais: língua, cultura e religião. Na prática são áreas inseparáveis, mas o pesquisador as distingue para fins de análise apenas. Precisa-se então de métodos científicos que sirvam de ferramentas adequadas para a análise. Assim, para o estudo da língua lança-se mão da linguística antropológica; para estudo da cultura, faze-se uso da antropologia cultural; e a ciência adequada para o estudo da religião, seria a fenomenologia da religião. Logo, a fenomenologia é para a religião, o que a linguística é para a língua e a antropologia para a cultura. 
Infelizmente, por falta de ênfase no estudo fenomenológico, via de regra tem-se lançado mão da antropologia cultural para o estudo da religião, o que tem dado bons resultados, mas poderiam ser melhores ainda se os recursos da fenomenologia fossem mais explorados.
Com a análise fenomenológica, podem-se levantar de forma bem mais segura as diferentes fontes religiosas presentes na religiosidade local. O que aparece são apenas formas, mas a análise não pode se limitar apenas a elas. É preciso descer ao nível dos significados e descobrir também qual a função social de cada fenômeno religioso. É simplismo concluir que os Xacriabá são católicos pelo simples fato de adorarem a imagem “católica” de São João dos Índios. A análise fenomenológica revelará o que aquela imagem realmente significa para eles. 
Compreender quais são as várias camadas da religião de um povo é de fundamental importância para uma comunicação relevante do evangelho.

2.      Teologias de respostas – Esta questão está diretamente ligada ao ponto anterior e foi levantada pela missióloga norte-americana, que por décadas trabalhou no Brasil, Frances Popovich. Para ela, uma abordagem missionária relevante precisa apresentar respostas bíblicas à cultura do povo. Com isto, ela não está sugerindo que os povos não alcançados vivam na dúvida, cheios de perguntas sem respostas. 
“Perguntas” são os aspectos específicos da cultura que precisam ser bem trabalhados para evitar o sincretismo, enquanto “respostas” são as elaborações bíblico-teológicas que irão de encontro a estas questões culturais específicas. A fenomenologia acha as “perguntas” e a teologia bíblica dá as “respostas”.
Paul Hiebert também aborda esta questão ao discorrer sobre contextualização. A sua proposta é exatamente a elaboração de respostas bíblicas para questões específicas, o que ele chama de “contextualização crítica”. O missionário deve incentivar os convertidos a fazerem uma análise crítica das suas antigas práticas, expor princípios bíblicos que tratem da questão e deixar a própria igreja achar as soluções. 
Para ele, “os novos cristãos podem voltar-se para as religiões populares tradicionais se não lhes forem oferecidas respostas cristãs para os seus problemas diários”. Por exemplo, a igreja que nasce em uma cultura que cultua ancestrais, precisará de uma teologia bíblica sobre espíritos bem específica. Do contrário, os cristãos continuarão cultuando ancestrais, inclusive achando “bases bíblicas” para isto. Ou seja, se a teologia bíblica não der as respostas, a cultura e religião darão, e aí acontecerá o sincretismo.
Vale mencionar que, o principal problema encontrado hoje nesta área é em igrejas já plantadas, que na sua segunda ou terceira geração apresenta traços sincréticos. Nestes casos, a proposta missiológica tem sido exatamente o ensino bíblico com viabilização teológica da liderança local, a partir do desenvolvimento de teologias específicas.

3.      Princípio do rompimento – Este princípio é uma sugestão de Alan Tippet e certamente é de grande aplicabilidade em contextos sincretistas. Segundo ele, em grupos assim, faz-se necessário um ato de rompimento com a antiga religiosidade, ou “ritual de separação”, que sirva como recordação de que aquelas antigas crenças e práticas ficaram para traz. É o que aconteceu em Atos 19.19, com alguns convertidos de Éfeso: “Grande número dos que tinham praticado ocultismo reuniram seus livros e os queimaram publicamente”.
Alguns cuidados precisam ser tomados para evitar extremismos. É preciso cuidar para que o rompimento não se torne uma alienação cultural. O convertido não deve romper com toda a sua cultura, muito menos com o seu povo, mas sim com as antigas práticas religiosas contrárias a princípios bíblicos. Outro cuidado a ser tomado é que este rompimento não deve ser imposto ou mesmo proposto pelo missionário. Deve acontecer por iniciativa dos próprios convertidos. O importante é que haja um marco que lembre a mudança de vida. O batismo, por exemplo, pode ser um momento ideal para a prática deste princípio.
Portanto, frente à desafiadora realidade sincretista que permeia tantas religiões, o missionário deve estar sempre atento a esta questão. As possibilidades de surgimento de igrejas sincretistas são grandes e por isto medidas devem ser tomadas para evitar tal fenômeno. Pesquisas mais abrangentes sobre sincretismo seriam de grande contribuição para o crescente contingente missionário. Temas como este, deveriam estar presentes em todos os currículos de formação missionária, especialmente vinculados aos estudos da fenomenologia da religião.

Em Cristo
Pr. Capelão Miss. Edmundo Mendes Silva